Barcelos, século XXI. Contra todas as recomendações da
UNESCO, continuava a delapidar-se património histórico da humanidade. É
verdade, esse grande monumento neo-paleolítico com o nome de Adelino Ribeiro
Novo não parava de ser maltratado quinzena após quinzena por uns quantos
gandulos de mau aspecto. Protestos se acumularam, joelhos se torceram, jactos
de cuspo se dirigiram de uma bancada a outra, mas sem efeito. Nem S. Mangonga
lhes valia. E a verdade é que o super-amortizado activo pré-histórico que era o
Adelino Ribeiro Novo continuava a servir de palco para jogos de futebol primodivisionário,
algures entre a lama e a relva, entre as marcações de campo fugidias e o dente
perdido de Jaime Cerqueira, contornando o texugo que se escondia sob o musgo de
uma publicidade a uma têxtil entretanto falida e a ferrugem das outrora robustas
estruturas de metal que suportavam a cobertura de zinco esburacada. Indivíduos
sem nada a perder após as intrincadas carambolas de uma carreira futebolística
que se lhes afigurara madrasta, desconhecedores do medo, fustigados pela
desilusão, instigadores de sonhos perdidos, calcavam aquele espaço sem
misericórdia. Revelamos as caras de alguns, ao jeito de alerta para jovens
incautos, adoradores de Dominguezes diminutos ou de Nunos Gomeses altaneiros,
para que nunca se esqueçam de quão dura pode ser a vida de um futebolista.
Na baliza, ocupando aquele triângulo de lama eterna onde,
rezam as crónicas anciãs, chegou um dia a brotar uma viçosa margarida, habitava
Paulo Jorge. O nome aparentemente simples não subentendia a grande loucura
deste “portero”, de dimensão superior ao tamanho da sua penca. Dele recordamos
o sorriso esquizofrénico, o olhar esgazeado e o constante mergulho temerário
para o lodo. Tornara-se num ser perfeitamente adaptado às circunstâncias e,
fazendo jus ao darwinismo, desenvolveu escamas indispensáveis ao saudável
exercício da sua função naquelas condições que, se não eram dantescas, eram
pelo menos um adjectivo que carregava um melindre tão ou mais superior que
“dantesco”. Dizem que era capaz de limpar os seus próprios cotovelos com a língua
e nós acreditamos. Agora, passado esse tormento, está mais tranquilo – embora
ainda conserve reminiscências de um “serial-killer”.
Na defesa, a posição de excelência dadas as condições do
recinto, onde desde sempre se revelaram grandessíssimos sarrafeiros e enormes
feridas abertas, havia sempre espaço para mais uma nódoa negra e um penso
rápido fugidio. Eram vários elementos a acotovelarem-se, literalmente, por um
lugar ao sol, com a subtileza característica de uma britadeira numa biblioteca.
Menos um – Sérgio Lomba. Podia ser um reconhecimento do estado do terreno ou
uma metáfora para a sua imaginária capacidade em travar lestos avançados, mas,
por acaso, era somente um apelido que assentava tão bem no Adelino Ribeiro Novo
como o Paulinho Santos a tirar desforço à lei do piton na perninha do João
Vieira Pinto. E é notório porque Sérgio Lomba não lutava por um lugar ao sol:
possuía evidentes problemas dérmicos ao nível de 70% do seu queixo, o que
equivale para aí à área de duas Guatemalas e um Benim, e sol a mais fazia-lhe
mal, conforme os diversos pareceres dos especialistas na matéria. Pelo menos, a
falta de sol contribuiu para que Sérgio Lomba tivesse uma longa carreira. Mas
aquelas falhas no queixo impediram-lhe de firmar um contrato de publicidade milionário com uma das três marcas
exibidas abaixo – adivinhe qual.
Cromos da Bola, SAD: na vanguarda do time-sharing e não só. Participe já! |
No meio-campo, o habitat natural do futebol-força, ou apenas
e só da força, os carregadores de piano sucediam-se e os tocadores de bombo
proliferavam. Era o território por defeito dos mestres do pontapé de ressaca,
dos arautos do jogo dividido e dos construtores de sucessivos blocos baixos que
levavam os forasteiros tecnicistas ao legítimo desespero. Havia o Deo, uma
alcunha bonita para o único indivíduo do balneário que sabia que existia um
produto chamado “roll-on” e que até possuía um da Lander, que deixava resíduos
de uma pasta levemente perfumada agarrados aos pêlos das axilas (mais tarde
soube-se que afinal a alcunha do bom Wenderson era “Del”, mas o mal já estava
feito desde a altura em que os brasileiros deixaram de pronunciar os “l”’s no
fim das palavras); o Sérgio Gameiro, que teve muito sucesso como cantor de uma
banda derivativa dos Delfins e que andava para aí a dizer que estava a aprender
a ser feliz com um sorriso um bocado abichanado, mas que certamente não
aprendeu muito por estas bandas (se não foi ele, foi um tipo parecido); o
Matias, de morfologia bem distinta relativamente ao velho Matias, o muro de
betão com bigode que deu cartas no futebol português dos idos de 90, uma vedeta
adiada da carga de ombro ostensiva, com tiques de glam-metal e adorador dos
Hell’s Angels, aliando a toda essa perfídia uma tendência para a adiposidade
que lhe garantia um poder de tracção essencial para aquele piso; e o Vítor
Vieira, falso-lento com o toque de Midas para as situações complicadas, um
exímio connaisseur das partes pudibundas da tabela classificativa, adepto das
meias em baixo, frequentador das extremidades do terreno onde ainda existia
alguma vida vegetal e cuja enorme quantidade de gel esparramada nas suas melenas
denunciava uma perigosa, quiçá suicida, tendência para a finta.
Os quatro magníficos no seu auge. |
Monumento ao avançado desconhecido. |
Na frente de ataque, órfãos de uma referência mítica como
Remco Boere, uma trave holandesa que fazia o Miguel Barros parecer ter a classe
do Van Basten, residiam vagabundos solitários, almas errantes, corpos ululantes
abandonados à sua sorte, reféns do jogo directo e sem sentido. A bola era
apenas um pormenor. O que realmente interessava era sobreviver, jogar em cunha,
correr como um queniano desvairado e aproveitar as distracções dos centrais,
apalpando-lhes os tomates num humilhante exercício homoerótico que, não raras
vezes, traduzia-se num reflexo de resposta em forma de cabeçada não sancionada
pelo árbitro. O néctar do golo provava-se de quando em vez, numa ocasional
molhada resultante de um casuístico pontapé-de-canto, o suficiente que lhes
permitisse aguentar, quais camelos na véspera de uma travessia pelo deserto,
mais alguns jogos a deambular “por ali, lá para diante”, para onde indicavam os
gestos vagos e desesperados dos misters Vítor Oliveira ou Álvaro Magalhães.
Destes heróis anónimos não reza a história, mas ainda assim destacamos o
exótico Jean Pierre, cujo pomposo nome foi ridicularizado pelas mãos, pés e
cabeças de implacáveis defesas sem rei nem roque. João Armando, seu adversário,
sintetizou o seu confronto na seguinte frase: “Esse franciú com nome de rabeta
deve pensar que faz farinha comigo, ó ca***ho”. Jean Pierre aprendera da forma
mais cruel a dura máxima do Adelino Ribeiro Novo: este campo não era para
meninos. Muito menos para aqueles armados em chiques.
2 comentários:
Genial!
Informação absolutamente indispensável: o Matias agora é vendedor da Remax: http://www.remax.pt/userimages/12/A_6136b7ad0a40417b94607f44ea949edb_iList.jpg
Paulo Jorge, o Palecas de Leiria que agora aos 42 anos de idade voltou a jogar numa equipa do distrital de Leiria (GRAP).
Enviar um comentário