sábado, março 02, 2013

Gangues de Barcelos



Barcelos, século XXI. Contra todas as recomendações da UNESCO, continuava a delapidar-se património histórico da humanidade. É verdade, esse grande monumento neo-paleolítico com o nome de Adelino Ribeiro Novo não parava de ser maltratado quinzena após quinzena por uns quantos gandulos de mau aspecto. Protestos se acumularam, joelhos se torceram, jactos de cuspo se dirigiram de uma bancada a outra, mas sem efeito. Nem S. Mangonga lhes valia. E a verdade é que o super-amortizado activo pré-histórico que era o Adelino Ribeiro Novo continuava a servir de palco para jogos de futebol primodivisionário, algures entre a lama e a relva, entre as marcações de campo fugidias e o dente perdido de Jaime Cerqueira, contornando o texugo que se escondia sob o musgo de uma publicidade a uma têxtil entretanto falida e a ferrugem das outrora robustas estruturas de metal que suportavam a cobertura de zinco esburacada. Indivíduos sem nada a perder após as intrincadas carambolas de uma carreira futebolística que se lhes afigurara madrasta, desconhecedores do medo, fustigados pela desilusão, instigadores de sonhos perdidos, calcavam aquele espaço sem misericórdia. Revelamos as caras de alguns, ao jeito de alerta para jovens incautos, adoradores de Dominguezes diminutos ou de Nunos Gomeses altaneiros, para que nunca se esqueçam de quão dura pode ser a vida de um futebolista.

Na baliza, ocupando aquele triângulo de lama eterna onde, rezam as crónicas anciãs, chegou um dia a brotar uma viçosa margarida, habitava Paulo Jorge. O nome aparentemente simples não subentendia a grande loucura deste “portero”, de dimensão superior ao tamanho da sua penca. Dele recordamos o sorriso esquizofrénico, o olhar esgazeado e o constante mergulho temerário para o lodo. Tornara-se num ser perfeitamente adaptado às circunstâncias e, fazendo jus ao darwinismo, desenvolveu escamas indispensáveis ao saudável exercício da sua função naquelas condições que, se não eram dantescas, eram pelo menos um adjectivo que carregava um melindre tão ou mais superior que “dantesco”. Dizem que era capaz de limpar os seus próprios cotovelos com a língua e nós acreditamos. Agora, passado esse tormento, está mais tranquilo – embora ainda conserve reminiscências de um “serial-killer”.

Na defesa, a posição de excelência dadas as condições do recinto, onde desde sempre se revelaram grandessíssimos sarrafeiros e enormes feridas abertas, havia sempre espaço para mais uma nódoa negra e um penso rápido fugidio. Eram vários elementos a acotovelarem-se, literalmente, por um lugar ao sol, com a subtileza característica de uma britadeira numa biblioteca. Menos um – Sérgio Lomba. Podia ser um reconhecimento do estado do terreno ou uma metáfora para a sua imaginária capacidade em travar lestos avançados, mas, por acaso, era somente um apelido que assentava tão bem no Adelino Ribeiro Novo como o Paulinho Santos a tirar desforço à lei do piton na perninha do João Vieira Pinto. E é notório porque Sérgio Lomba não lutava por um lugar ao sol: possuía evidentes problemas dérmicos ao nível de 70% do seu queixo, o que equivale para aí à área de duas Guatemalas e um Benim, e sol a mais fazia-lhe mal, conforme os diversos pareceres dos especialistas na matéria. Pelo menos, a falta de sol contribuiu para que Sérgio Lomba tivesse uma longa carreira. Mas aquelas falhas no queixo impediram-lhe de firmar um contrato de publicidade milionário com uma das três marcas exibidas abaixo – adivinhe qual.
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No meio-campo, o habitat natural do futebol-força, ou apenas e só da força, os carregadores de piano sucediam-se e os tocadores de bombo proliferavam. Era o território por defeito dos mestres do pontapé de ressaca, dos arautos do jogo dividido e dos construtores de sucessivos blocos baixos que levavam os forasteiros tecnicistas ao legítimo desespero. Havia o Deo, uma alcunha bonita para o único indivíduo do balneário que sabia que existia um produto chamado “roll-on” e que até possuía um da Lander, que deixava resíduos de uma pasta levemente perfumada agarrados aos pêlos das axilas (mais tarde soube-se que afinal a alcunha do bom Wenderson era “Del”, mas o mal já estava feito desde a altura em que os brasileiros deixaram de pronunciar os “l”’s no fim das palavras); o Sérgio Gameiro, que teve muito sucesso como cantor de uma banda derivativa dos Delfins e que andava para aí a dizer que estava a aprender a ser feliz com um sorriso um bocado abichanado, mas que certamente não aprendeu muito por estas bandas (se não foi ele, foi um tipo parecido); o Matias, de morfologia bem distinta relativamente ao velho Matias, o muro de betão com bigode que deu cartas no futebol português dos idos de 90, uma vedeta adiada da carga de ombro ostensiva, com tiques de glam-metal e adorador dos Hell’s Angels, aliando a toda essa perfídia uma tendência para a adiposidade que lhe garantia um poder de tracção essencial para aquele piso; e o Vítor Vieira, falso-lento com o toque de Midas para as situações complicadas, um exímio connaisseur das partes pudibundas da tabela classificativa, adepto das meias em baixo, frequentador das extremidades do terreno onde ainda existia alguma vida vegetal e cuja enorme quantidade de gel esparramada nas suas melenas denunciava uma perigosa, quiçá suicida, tendência para a finta.
Os quatro magníficos no seu auge.

Monumento ao avançado desconhecido.


Na frente de ataque, órfãos de uma referência mítica como Remco Boere, uma trave holandesa que fazia o Miguel Barros parecer ter a classe do Van Basten, residiam vagabundos solitários, almas errantes, corpos ululantes abandonados à sua sorte, reféns do jogo directo e sem sentido. A bola era apenas um pormenor. O que realmente interessava era sobreviver, jogar em cunha, correr como um queniano desvairado e aproveitar as distracções dos centrais, apalpando-lhes os tomates num humilhante exercício homoerótico que, não raras vezes, traduzia-se num reflexo de resposta em forma de cabeçada não sancionada pelo árbitro. O néctar do golo provava-se de quando em vez, numa ocasional molhada resultante de um casuístico pontapé-de-canto, o suficiente que lhes permitisse aguentar, quais camelos na véspera de uma travessia pelo deserto, mais alguns jogos a deambular “por ali, lá para diante”, para onde indicavam os gestos vagos e desesperados dos misters Vítor Oliveira ou Álvaro Magalhães. Destes heróis anónimos não reza a história, mas ainda assim destacamos o exótico Jean Pierre, cujo pomposo nome foi ridicularizado pelas mãos, pés e cabeças de implacáveis defesas sem rei nem roque. João Armando, seu adversário, sintetizou o seu confronto na seguinte frase: “Esse franciú com nome de rabeta deve pensar que faz farinha comigo, ó ca***ho”. Jean Pierre aprendera da forma mais cruel a dura máxima do Adelino Ribeiro Novo: este campo não era para meninos. Muito menos para aqueles armados em chiques.

2 comentários:

fitzx disse...

Genial!
Informação absolutamente indispensável: o Matias agora é vendedor da Remax: http://www.remax.pt/userimages/12/A_6136b7ad0a40417b94607f44ea949edb_iList.jpg

Anónimo disse...

Paulo Jorge, o Palecas de Leiria que agora aos 42 anos de idade voltou a jogar numa equipa do distrital de Leiria (GRAP).

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